domingo, 25 de março de 2007

Festambo de Parabéns

Este é o terceiro ano do FESTAMBO e a Banda de Ourém, enquanto organizadora, está de parabéns.
Parece-me que este foi o melhor dos três festivais e os anteriores já tinham sido interessantes. Creio que o que foi inovador nos espectáculos deste ano, e resultou muito bem, foi conseguir mostrar, de uma forma digna e equilibrada, uma associação das actividades amadoras da Banda de Ourém (âmbito local) com outras profissionais e de âmbito nacional. Assim todos saem a ganhar. Ganham os associados da Banda que frequentam as diversas modalidades ligadas à música e à dança e que com este tipo de interacção se sentem mais estimulados e motivados. Ganham os profissionais que nos visitam (que também têm, e assim cumprem, uma responsabilidade pedagógica) e podem atingir e captar novos públicos. Ganha Ourém que, assim, tem acesso a melhores espectáculos e por via da sua realização se promove regionalmente.

Parabéns à Banda. As boas ideias, sobretudo quando concretizadas, merecem reconhecimento.
P.S.- A imagem que eu publico é de um Festambo anterior. Recomendo que vejam a magnífica imagem do espectáculo de dança, deste ano, publicada no blog A:1:CLIQUE no dia 24 de Março.
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sábado, 24 de março de 2007

Os livros e (ou) a vida!


O Centro de Arte Moderna da Gulbenkian exibia, ainda há pouco tempo, esta interessante instalação.

No interior dos muros de livros, em cima e em baixo, estavam colocados espelhos que criavam, em quem entrava, a ilusão de um poço (ou túnel) «infinito» com paredes de livros. A ilusão criada era tão perfeita que vi gente recuar com vertigens. O número de livros usado em tal construção constituía, só por si, uma imagem suficientemente clara (mesmo sem a tal ilusão) para nos consciencializar que a quantidade de livros que nunca teremos tempo de ler é esmagadora.

Para quem gosta de ler a única ideia consoladora é que uma grande parte dos livros constitui «cópias» (quase sempre maçadoras) de coisas que já estavam escritas e são, por isso, dispensáveis. Apesar disso todos sabemos que, para cada um de nós, a quantidade de livros interessantes que existem exigiria um tempo muito superior àquele de que disporíamos, mesmo numa vida muito longa. E a vida é, antes de mais, para ser vivida. Contudo são os livros, os bons livros, que nos lembram constantemente que a verdadeira emoção é a própria vida. E são eles que nos ajudam a criar uma ideia da «medida» com que vivemos essa emoção.

Aqui deixo (sem outros comentários) uma passagem de Joyce sobre a descoberta do amor e da paixão, por parte de um adolescente:

… Em poucos momentos, estava descalço, com as meias dobradas dentro dos bolsos e os sapatos de lona pendurados aos ombros pelos atacadores atados e, arrancando dos detritos em volta dos rochedos um pau aguçado, roído pelo sal, desceu a rampa do molhe.

Havia um longo riacho na praia e, enquanto patinhava, seguindo o seu curso, reparava no número infindável de algas à deriva. Cor de esmeralda, pretas, avermelhadas e cor de azeitona, deslocavam-se por baixo da corrente, ondulando e girando. A água do riacho era escura e interminável e reflectia as nuvens que adejavam no alto. As nuvens pairavam silenciosamente por cima dele e o ar quente e cinzento estava parado e uma nova vida rebelde castava nas suas veias…

… Estava sozinho. Estava livre, feliz e próximo do cerne selvagem da vida. Estava sozinho e jovem e predisposto e rebelde de coração, só, no meio do ar selvagem e das águas salobras, da colheita marinha de conchas e algas e da velada luz cinzenta e de figuras de crianças e raparigas envergando trajos alegres e de cores claras, e de vozes infantis e juvenis que se erguiam no ar.

Viu uma rapariga diante dele, a meio da corrente, só e parada, a olhar para o mar. Parecia ter adquirido, por artes mágicas, semelhanças com uma estranha e bela ave marinha. As suas pernas nuas, longas e esbeltas, eram tão delicadas como as de uma garça, e eram puras, excepto no local onde uma alga cor de esmeralda tinha aderido à sua carne como um sinal. As suas coxas, mais cheias e um tom suave como o do marfim, estavam nuas quase até às ancas, onde as franjas brancas dos calções lembravam uma penugem branca e macia. As saias de um azul de ardósia estavam ousadamente enroladas em volta da cintura, descaindo atrás como a cauda de uma pomba. O seu peito fazia lembrar o de uma ave, macio e leve, leve e macio como o peito de uma rola de plumagem escura. Mas os seus longos cabelos louros eram juvenis, como juvenil era o seu rosto, tocado pela maravilha da beleza mortal.

Estava só e quieta, olhando para o mar; e, quando sentiu a presença dele e a adoração nos seus olhos, voltou os seus para ele, sustentando tranquilamente o seu olhar, sem vergonha e sem malícia. Sustentou o olhar dele durante longo, longo tempo e depois, calmamente, baixou os olhos e fitou a corrente, agitando levemente a água com os pés, para um lado e para o outro. O primeiro ruído suave da água que se agitava quebrou o silêncio, baixo e leve e sussurrante, débil como os chocalhos das ovelhas; para cá e para lá, para cá e para lá; e um leve rubor tremulou no rosto dela.
- Deus do Céu! bradou a alma de Stephen, numa explosão de alegria profana.

Afastou-se subitamente dela e começou a atravessar a praia. Tinha o rosto a arder; todo o seu corpo estava em chamas; os seus membros tremiam. Continuou a caminhar, sempre em frente, pela areia, até muito longe, acompanhando o cântico selvagem do mar, gritando saudações ao advento da vida que chamara por ele.

A imagem dela ficara gravada na sua alma para sempre e palavra alguma quebrara o silêncio sagrado do seu êxtase. Os olhos dela tinham-no chamado e a alma dele repondera ao apelo. Viver, errar, cair, triunfar, recriar a vida a partir da vida! Tinha-lhe aparecido um anjo rebelde, o anjo da juventude e da beleza mortais, um enviado das belas cortes da vida, para lhe abrir, num instante de êxtase, as portas de todos os caminhos do erro e da glória. Sempre em frente, em frente, em frente!

Deteve-se subitamente e escutou o seu coração, no meio do silêncio. Quanto tempo teria caminhado? Que horas seriam?

Não havia pessoa alguma perto dele e o dia parecia desvanecer-se. Voltou para o lado da terra e correu para a margem e, subindo a encosta de areia, sem se preocupar com os seixos cortantes, descobriu um círculo de areia no meio de dunas cobertas de tufos de ervas e aí se estendeu, para que a paz e o silêncio da noite pudessem acalmar a agitação do seu sangue.

Sentia por cima de si a cúpula ampla e indiferente e os calmos movimentos dos corpos celestes; e a terra por baixo dele, a terra de que tinha nascido, acolhera-o no seu seio.

Fechou os olhos no langor do sono. As suas pálpebras estremeceram, como se sentissem o vasto movimento cíclico da terra e dos seus guardiões, estremeceram como se sentissem a luz estranha de um mundo novo.

A sua alma penetrava num mundo novo, fantástico, confuso, indistinto como um mundo submarino, atravessado por formas e seres nebulosos. Um mundo, um clarão ou uma flor? Bruxuleando e tremulando, tremulando e desdobrando-se, uma luz que irrompia, uma flor que nascia, estendia-se numa infindável sucessão si própria, irrompendo, totalmente rubra, e desdobrando-se e desmaiando até ao mais pálido tom rosado, pétala a pétala, onda de luz a onda de luz, inundando os céus com os seus clarões suaves, cada um mais profundo que o anterior.

A noite caíra quando acordou e a areia e as ervas áridas do seu leito já não brilhavam.

Ergueu-se lentamente e, recordando o êxtase do seu sonho, suspirou de alegria.

Subiu à crista da duna e olhou em volta. A noite descera. A orla da lua nova fendia a vastidão pálida do céu, o rebordo de um arco de prata incrustado em areia cinzenta; e a maré avançava rapidamente sobre a terra, com um sussurro baixo das suas ondas, isolando algumas silhuetas atrasadas em poças de água distantes…

Extracto do livro «Retrato do Artista Quando Jovem» (1916), de James Joyce.
(Colecção Mil Folhas, n.º 40, Edição de «O Público», 2003, pp 170, 172)

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