domingo, 29 de abril de 2007

O Lugar Onde a Cabra Matou o Lobo (A Aldeia da Pena 25 Anos Depois!)


Posted by Picasa Há 25 anos atrás, em 1982, tive a oportunidade de visitar aquela que era na altura, seguramente, uma das aldeias mais isoladas de Portugal, a Aldeia da Pena. Tenho contado muitas vezes aos meus alunos alguns pormenores dessa viagem. Nesta Páscoa voltei lá, agora com os meus filhos, e o que vi, somado às recordações daquela primeira visita, constituiu motivação suficiente para a elaboração deste post.


Na altura da minha primeira ida à Pena, estava a estudar em Coimbra, e a visita foi feita no âmbito da cadeira de Geografia da População (da Professora Fernanda Delgado). A ideia era visitar uma aldeia isolada e procurar compreender as causas e as consequências do isolamento populacional. O conhecimento de unidades territoriais isoladas não era novidade para mim que, vivendo em Ourém, conhecia alguma dessa realidade. No entanto, 8 anos depois do 25 de Abril, não pensava ser possível encontrar, em Portugal, uma aldeia tão isolada como aquela. Por várias razões aquela viagem permanece como uma das mais impressivas que fiz até hoje.
Saímos de Coimbra no velhinho Land Rover do Instituto de Estudos Geográficos. Já em S. Pedro do Sul (concelho a que pertence a aldeia da Pena) começam a avistar-se algumas cristas quartzíticas que se destacam imponentes da envolvente xistenta. Na estrada para a aldeia subimos ao alto de S. Macário, o ponto mais elevado do concelho a mais de 1000 metros de altitude, onde existe uma pequena ermida. O panorama, embora deslumbrante, deixa antever algumas das principais causas do isolamento. Nas áreas envolventes (de rochas mais brandas) surgem vales profundamente encaixados e é num deles que iremos descobrir a Pena. A descida é vertiginosa. Depois de dias muito chuvosos a estreita estrada de terra estava um pouco alagada e não fosse o caso de nos deslocarmos num todo o terreno teríamos tido grandes dificuldades em chegar. Finalmente estávamos na Pena, uma bela aldeia de casinhas de xisto (algumas abandonadas), rodeada por verde e por belas montanhas mas sem luz eléctrica, telefone ou água canalizada. Apesar disso a quantidade de galinhas que por ali vimos, o gado e os campos férteis e bem amanhados permitiram perceber que a subsistência diária era coisa garantida. O som da água corrente (a aldeia é atravessada por uma pequena ribeira que as chuvas dos últimos dias tinham engrossado) e o gado pastando pelas vertentes davam um tom bucólico que ainda hoje recordo. Para se ter uma ideia do encaixe da aldeia, nos dias Inverno, há pouco mais de 3 horas de sol directo.
O tempo apagou algumas das memórias dessa visita mas penso que não andarei longe da verdade ao revelar os seguintes factos. Na altura a aldeia tinha 13 habitantes, na sua maioria idosos, e apenas uma criança. Lembro-me de que falámos com alguns dos habitantes mas, apesar das inúmeras tentativas, não conseguimos falar com a criança que rondaria os 10 anos de idade. O miúdo, embora presente, manteve sempre uma distância segura daquela dezena de intrusos que tinham chegado sabe-se lá de onde e para fazer sabe-se lá o quê. Alguns dos habitantes com quem falámos contaram-nos coisas da vida simples que levavam, mostraram-nos as pequenas casas onde moravam, falaram dos que dali nunca tinham saído e dos que tendo saído nunca mais voltaram. Com um sentido de humor muito próprio, quem connosco falava, ria das três mulheres que vindo da apanha da erva seguiam em fila por um carreiro mancando, as três, da perna esquerda. E quando estão doentes, como é que fazem? – «Aqui, a gente não pode ficar doentes», reponderam simplesmente. Depois falaram-nos das lendas com que identificavam a aldeia. Neste particular a Pena era a aldeia da «serpente gigantesca (com mais de 200 metros) morta pelo S. Macário» mas também a «aldeia da cabra que matou o lobo» e do «morto que matou o vivo». A origem destas lendas está muito ligada ao enquadramento geográfico daquele território.

A aldeia da Pena pertence à freguesia de Covas do Rio (também ela uma aldeia muito isolada). Para se chegar à sede de freguesia os habitantes da Pena tinham 2 alternativas. Por estrada, subindo a vertente (uma jornada extenuante de mais de 3 horas a pé), ou descendo a ribeira por uma estreita passagem entre fragas que embora encurte muito o tempo da viagem só possível a pé e, sobretudo no Inverno, usando de muitas cautelas. Era por esta passagem que, quando morria alguém, se carregavam as urnas até Covas do Rio. Acontece que, em determinada ocasião, uma queda fez com que uma urna atingisse mortalmente alguém que acompanhava o cortejo fúnebre. Devido a este acidente a Pena passou também a ser conhecida como a aldeia do morto que matou o vivo. Para evitar mais alguma tragédia semelhante, os habitantes da Pena, construíram o seu próprio cemitério. O certo é que, tenha sido ou não por essa razão, encontramos na Pena aquele que é, seguramente, um dos mais pequenos cemitérios do mundo.
Curiosamente a lenda da história da cabra que matou o lobo terá ocorrido no mesmo lugar. No topo de uma das fragas estava uma cabra e no outro um lobo. Quando o lobo saltou para apanhar a cabra, esta mais expedita, com um salto desviado e uma marrada certeira, conseguiu lançar o lobo para o precipício e assim salvar-se. Depois de ouvirmos estas histórias e de vermos os locais em que ocorreram, foi por aquela passagem estreita que, com muitas cautelas, nos deslocámos a Covas do Rio a fim de conhecer a aldeia e fazer uma pausa para a merenda. Constatámos que também esta aldeia, onde havia uma escola primária, era muito isolada. Contaram-nos que, nesse ano de muita chuva, os alunos quase não tinham tido aulas (era aliás o caso, naquele dia) porque a professora que vinha de S. Pedro do Sul (utilizando uma moto) se deparava frequentemente com uma estrada de terra absolutamente intransitável. Para se ter uma ideia do que estamos a falar diga-se que na viagem de jipe, por nós feita, encontrámos a estrada, em três pontos, cruzada por linhas de água temporárias.

Na aldeia de Covas do Rio lembro-me de ver, afixado na porta da taberna, um cartaz do PPD. Depois disseram-nos que ali todos «votavam no PD» (dito assim mesmo, pêdê) porque era isso que, os senhores lá de S. Pedro do Sul, tinham dito para fazerem. Dentro da taberna em chão de terra batida e paredes toscas de pedra, uma única prateleira com alguns (poucos) produtos para venda. Lembro-me que ficámos chocados com os preços das lapiseiras. Durante muito tempo não se devem ter vendido, pois tínhamos levado algumas dezenas para oferecer às crianças da escola. Os miúdos de Covas do Rio, que provinham de duas ou três famílias numerosas, merendaram connosco e no fim da refeição já brincavam com carrinhos feitos com as latas de conserva que leváramos, agora vazias. Quando o Jipe nos foi buscar para regressarmos eles não se limitaram a dizer adeus e acompanharam, correndo e acenando, a marcha lenta que o carro fazia para vencer as más condições da estrada. Na altura tive a estranha sensação de já ter visto (na televisão) imagens parecidas com aquelas, mas provenientes de paragens mais longínquas e pouco conotadas com um país (Portugal) que se preparava para integrar a Comunidade Económica Europeia daí a pouco tempo.

Hoje quem se desloque à Pena chega pela mesma estrada, só que agora alcatroada. Os acessos sem dúvida melhoraram mas a falta da vegetação (consumida por um fogo ocorrido há dois anos), torna a estrada, sobretudo para quem tenha vertigens, um verdadeiro suplício. Mas vale a pena. Há 25 anos pensávamos estar em presença de uma aldeia, muito bela mas condenada ao desaparecimento em pouco tempo. Na verdade existem na região muitas aldeias abandonadas, mas a Pena ainda resiste. Talvez, neste caso, o isolamento e a beleza natural tenham contribuído para essa resistência. Segundo se anuncia numa tabuleta à entrada da aldeia vivem ali 10 pessoas. É possível até encontrar um pequeno e interessante Café-Restaurante e um local de venda de produtos artesanais. Segundo percebi existem grupos de pessoas que se deslocam com alguma frequência à Pena (cada vez mais, há uma nostalgia por estes espaços). Por outro lado também a comunicação social (incluindo a televisão) começa a descobrir e a divulgar aquela aldeia.

Quanto a mim, olho para a aldeia da Pena e não me parece a mesma. A Serra da Arada, devido aos incêndios, está hoje mais despida e por isso o enquadramento da Pena é muito menos rico. Por outro lado, muitas das casas de xisto foram recuperadas mas no processo estão a ser usados alguns elementos descaracterizadores. O facto de ainda existirem alguns edifícios por recuperar aliado à existência de duas velhas carcaças de automóveis abandonados em plena aldeia (coisa inimaginável há 25 anos) prejudica um pouco a imagem do lugar. O Cemitério, que era uma coisa minúscula para duas campas, parece-me agora um pouco maior. Seja como for, há 25 anos poucas coisas fariam prever que a Pena resistisse tanto tempo. Passado todo este tempo gostei, francamente, de ter voltado à Pena e ver que a aldeia ainda existe. E, surpresa das surpresas !, saber que vive naquele lugar uma menina com cinco anos de idade. Provavelmente será filha do rapazito que nós vimos (ainda criança) há tantos anos atrás.

Muitas das esperanças da aldeia residem agora naquela criança pois ela representa o futuro. Talvez tenham razões para isso. Num tempo de novas tecnologias da comunicação e com melhores meios de transporte, o isolamento geográfico já não representa o mesmo que há 25 anos. Da mesma forma que a cabra indefesa, com engenho, se desenvencilhou do lobo, também a Pena está a vencer o isolamento. É preciso acreditar que o interior do país está cheio de oportunidades, ainda que por vezes seja preciso inventá-las como parecem estar a fazer na aldeia da Pena.

3 comentários:

Pata Negra disse...

Belo post! A poesia desse tempo não poderá voltar porque a poesia, para o ser, tem de o ser do momento!
A dureza da vida, o será sempre, sobre xisto ou carcaças de automóvel, existirão vidas desconfiadas do dia de amanhã!
Mas não substimemos os responsáveis pela desertificação do país. Para eles, além Cidades, só interessa o interesse turístico!
O povo, aquele que até há pouco tempo se respeitava, deixou de fazer parte da paisagem:tem tratorinhas, deita plásticos para o chão e perdeu a reverência pelos doutores. Por isso mesmo, o melhor é fechar-lhes as escolas, os hospitais, as esquadras e tudo o que de alguma forma o protege! E já agora: deixem arder!
Pelo andar da carruagem, aldeias não, dão prejuízo!

Nuno Abreu disse...

neste país de dimensões tão reduzidas, é um absurdo não preservarmos estes postais com as suas características originais.

são disse...

Visitei e o que vi foi uma aldeia totalmente abandonada em todos os sentidos.
Os presidente da câmara devia preservar esta aldeia tão linda e maravilhosa.